Dia Bárbara Nobre
Arte de Capa: Flavia Castanheira
Companhia das Letras – 2025 – 200 páginas
Fugindo do passado, Teresa encontra por acaso o pequeno povoado de Urânia, que logo se revela uma terra nutrida de sangue. A forasteira não sabe, mas, reza a lenda, a cidade esconde uma mitológica serpente de fogo, que há séculos descansa em um buraco fechado por uma grande pedra.
A região agora abriga um entreposto comercial bem-sucedido, graças aos esforços e talentos de Abigail, uma mulher que buscava recomeçar a vida livre das amarras do pai rigoroso e da submissão esperada do casamento. Ali ela estabelece uma pequena sociedade matriarcal, onde tudo cresce e dá frutos, e nada sai de seu controle ― exceto a filha, Hermínia. A jovem, enfeitiçada pelo amor de um homem perverso, se entrega a um relacionamento que, por ciúmes, culminará com sua morte violenta. Seu espírito, perdido em meio a tanto ódio e injustiça, passa a vagar por aquelas terras em busca de vingança, e Hermínia se torna a santa das espancadas.
Boca do mundo entrecruza a vida dessas três personagens em um enredo brutal e envolvente sobre as violências diárias a que as mulheres estão submetidas, e também as maneiras possíveis de enfrentá-las e recomeçar a vida.
Este livro me chamou a atenção já na sinopse ao ler “histórias reais” e “povoado no Nordeste” porque simplesmente amo a cultura do meu Nordeste. Mas a medida que li a sinopse completa e li sobre uma serpente de fogo, aquilo me chamou mais a atenção, já como há algo assim na minha cidade. Quando comecei efetivamente a leitura, li coisas que soube que envolviam a minha própria região especifica, como, por exemplo, pés de umbuzeiros. Toda ambientação gritava comigo que era conhecia, e, enfim, pausei a leitura e fui pesquisar sobre Dia Bárbara Nobre, a autora. Para meu espanto, me dei conta que já tinha lido (e resenhado!) um conto dela, que fez parte da antologia “O Dia escuro” (e você pode ler minha resenha sem spoilers clicando AQUI), mas lá ela assinou somente Dia Nobre.
Mas a grande surpresa veio mais ainda pesquisando sobre a autora e descobrindo que tinha muito, mas muito mesmo sobre minha cidade e a cidade ao lado em sua história e também em sua própria vida. Foi um prazer imensurável e, mais ainda, ler sobre nossa cultura. Dia Barbara é Cearense, da região do Cariri, e enquanto lia este livro, cheguei a falar com minha irmã que era tão, tão triste o quanto perdemos da cultura de nossos povos originários e o quanto o resto do país também não sabe de muito sobre este povo que chegou a tentar sair do julgo dos Portugueses – pesquisem sobre. Só pesquisem. Sério. Acho que comecei mais esta resenha como uma carta de amor ao nordeste simplesmente porque quero, mas enfim, indo ao ponto, vamos falar sobre a trama de Teresa, Bamila, Hermínia, Djanira e Abigail, se é que vou conseguir colocar em palavras o quanto amei este livro.
Do lado de fora, a frentista compadecida indicou uma pousada na cidade. Saindo da estrada e entrando no povoado, tem uma praça com uma fonte enorme no meio. Logo à direita, do lado da igreja, fica a pousada de d. Djanira da Taboa, uma casa azul. Dá pra ver de longe, disse, desenhando o mapa no ar.
Cinco minutos depois, ela passava pela placa verde com o nome do povoado. As letras fosforescentes dançaram à sua frente, sua vista embaçou, como acontece nos sonhos, mas mesmo assim conseguiu ler:
bem-vinda a urânia
Sobre a trama, quero deixar claro, desde começo, que este livro vai ressoar muito forte em todas as mulheres. É isto. É uma afirmação simples e pura. Marquei um trecho tão longe deste livro que se torna impossível colocar como quote aqui, mas gostaria de mostrar a cada uma de nós que já passou por um relacionamento tóxico, que teve seu brilho roubado, sua luz apagada, seus sonhos ridiculizados e não só com parceiros românticos, mas as que também foram criadas a sombra de uma figura masculina opressora.
A trama começa com Teresa dirigindo um carro por uma estrada até que ele para em um posto de gasolina no meio do nordeste, em Pernambuco, desesperada. Sem entendermos nada sobre o passado dela, só lemos que ela enterra um pequeno corpo no meio da caatinga, depois seguindo para Urânia, um povoado que parece escondido, mas, ao mesmo tempo, parece ser um lugar calmo com lideranças femininas. Logo Teresa chega a pousada de Djanira e assim que se coloca em seu quarto, apaga com uma febre intensa. Ao não sair do quarto até meio dia seguinte, a dona da pousada entre no quarto e encontra a jovem apagada e é assim que começamos já a segunda parte e a entender o passado, já como a trama é dividida em 5 partes narrativas: “Futuro passado”,“Tempo findado”, “Tempo onírico”, “Tempo presente” e “Devir”. Enquanto A primeira parte somente nos apresenta brevemente Teresa, Djanira e Abigail, a segunda começa contando a vida de Abigail, dona e proprietária do meu coração e de toda trama, merecedora do mundo todinho.
Muito tempo antes, na casa habitada pela família Alvarez, viveu um senhor de engenho com muitas mulheres escravizadas exclusivas para reprodução. Uma delas, Maria Magé, foi escolhida para a função aos nove anos, quando desceram suas primeiras regras. Teve quinze filhos, todos vendidos tão logo completavam cinco anos e aprendiam o trabalho na lavoura. Na última gestação, aos vinte e um anos, teve complicações no parto e, junto do filho, perdeu também o útero, sendo morta a pauladas pelo capataz assim que seu leite secou.
Pouco antes de morrer, Maria Magé lançou sobre o capataz uma maldição: Você nunca terá paz e viverá vagando pelo mundo por toda a eternidade. Tempos depois, o capataz foi pego em uma emboscada por causa de uma dívida de jogo e morreu pendurado em uma árvore nas proximidades da fazenda. Sua alma andarilhava solitária pelas estradas, sem que ninguém a visse ou ouvisse, mas sempre voltava à casa onde vivera, buscando encontrar a mulher que o havia condenado — não se sabe se para pedir perdão e se livrar da pena ou amaldiçoá-la de volta. Muitos anos e andanças depois, encontrou a primeira alma que podia vê-lo: a menina Abigail.
Filha mais velha de 3 filhas de Eliza Moreno e seu marido, Irineu Alvarez, Abigail era destemida e tinha uma curiosidade imensa sobre a roça do seu pai, não se privando de aprender tudo para o comando correto do lugar, mas também tinha o dom de ver espíritos desde criança. Djanira chegou na vida de Abigail com 8 anos, 2 a menos do que a garota que viria ser a sua grande amiga por toda vida, depois da morte do pai e abandono da mãe, se tornando ajudante na casa nas tarefas domesticas, mas logo conquistando uma posição de maior ascensão na família, por assim dizer. A amizade entre as duas se forjou no meio da dor de Djanira perder sua família sanguínea, a mão de Abigail se tornando o ponto firme para a fazer dormir sem pesadelos. Cresciam na cidade de Arcádia em uma velocidade grande.
Mas estamos um pouco depois do meio do seculo passado, e logo o pai de Abigail decidiu que ela precisaria se casar, arrumando um casamento que acreditava que seria bom para a filha. Abigail, sendo a mulher que sempre foi, tentou fugir mais de uma vez, mas se viu sendo obrigada a se casar com Joaquim Mendes neste arranjo entre os pais do casal. A grande violência que Abigail sofre me pegou de surpresa (não deveria) e acredito que também vá pegar quem lê o livro, e há algo que quero pontuar sobre os personagens masculinos da trama: todos os violentos são somente chamados de “Homem”, o que achei crucial para a trama, colocando em destaque que usavam de seu gênero para perpetuarem tudo de horrendo que faziam.
Viviam em paz naquela morada, a casa de sú-úãngiu, como eles chamavam a cobra de fogo, a grande serpente adorada por eles. Por centenas de anos viveram uma vida quieta, até a chegada dos caraí, os homens brancos. O horror branco obrigou a terra a beber sangue. Os cariris resistiram como puderam até um buraco se abrir bem onde ficava o coração de sú-úãngiu, no meio do sertão, desenterrando do fundo uma peste. Jararacas, centopeias e escorpiões enxamearam o lugar, devorando sem pena as carnes pálidas e flácidas.
Quando tudo acabou, restaram poucos cariris. Do buraco, jorrava uma água lodosa que nunca secou, batizada por eles de Teiwaridzá, “Boca do Mundo”. Assombrados demais para permanecerem ali, fecharam-no com uma pedra acorrentada ao chão e partiram para longe, para o Norte, para o coração da floresta amazônica.
Só que preciso voltar no tempo e falar sobre o dom de Abigail sobre ver espíritos e a forma como foi ajudada por Beatriz de Orange, também conhecida como Bea d’Holanda, a filha de um imigrante holandês que também via espíritos e se tornou uma especie de feiticeira. A mulher envelheceu no sertão e aparece em momentos chaves da trama, com seu passado também contado durante a trama, mostrando a força que estas mulheres fortes representam no nosso interior, que também está mais do que presente na figura da Beata Maria de Araújo, que vem a se tornar a santa de Urania, uma devoção que Abigail herdou da sua mãe, que também herdou de sua mãe. E aqui fica um conselho meu, para você que me lê e lerá este livro: pare sempre para pesquisar sobre todas essas figuras e palavras que você (provavelmente) não entender.
A vida de Abigail continua casada, entrando em um acordo com seu marido para levarem uma vida melhor. Ainda lidando com as consequências da violência sofrida, Abigail toma uma decisão que parece quase impossível de ler, mas, novamente, quem for mulher vai entender o sentido. Decidida a seguir a vida como quer, Abigail impede o casamento forçado de Djanira e a leva para as terras de Urânia, que seu sogro tinha e não se importava. Lá ela começa um vinhedo, evoluído com os anos para um vinhedo também, sendo a uva uma fruta que prosperou muito por aqui, e mesmo sendo bastante ocupada e comprometida com a fazenda, decidiu ter um herdeiro. É assim que Herminia nasce, uma versão doce do pai. Estudiosa, se forma como professora para ajudar no povoado formado em Urânia, em torno da Vinícola Moreno, mas o amor cruza seu caminho, e também não há nada de gentil nisso.
O resto do mundo, quando pensa no sertão, julga que ali vive uma morte ocre e espinhosa, com cactos cinza e crânios de boi espalhados pelo chão, mas o sertão não é só secura, terra craquelada feito maquiagem rompida no rosto. Lá a morte não é partida, mas chegada. Nos espinhos se escondem veios profundos, alimentos para raízes e animais de toda espécie. Só quem sonha acordado consegue ver o sertão como ele é.
O que me espanta ao escrever esta resenha é que já escrevi bastante e não falei ainda nem 30% da trama e muito menos tudo que desejava. A vida de Hermínia, como entrega a sinopse, é ceifada, mas o leitor não tem a menor ideia de toda trama por trás disso, e se você se questiona sobre Teresa, toda história dela ainda é também desenvolvida nas outras partes do livro, culminando em uma cena com poder feminino transbordando pelas páginas, nos lembrando que mulheres são capazes de tomarem as rédeas de seus vidas em suas mãos novamente, mesmo depois de terem sido espancadas, violentadas e destruídas porque há força nelas, há o poder da vida, há centenas de outras mulheres que são capazes de a ajudarem. A forma como a fazenda de Abigail cresce as margens do Rio Opará (Você o conhece este rio, caso não reconheça o nome. Acredite em mim. Pesquise no Google e se surpreenda.) é também a medida que a trama sobre a Santa das Espancadas cresce, surgindo para ajudar as mulheres que chamam por seu nome porque, como falei, mulheres ajudam outras mulheres.
A trama trata de violência, mas nenhuma cena de terror que qualquer uma dessas mulheres passa é retratada fielmente, somente o necessário para que o leitor entenda o que aconteceu, coisa que achei de uma delicadeza que somente mulheres são capazes de fazer quanto se tratam do assunto. A forma forte como toda a história de Abigail, Djanira, Hermínia, Bamila (personagem que você terá de ler para saber quem é) e Teresa se cruzam e se espalham, são capazes de partir o coração mais duro que existir. No final das contas, Dia Barbara Nobre entrega um livro capaz de tirar aquela sensação que sentimos quando acabamos de ler um livro que nos marcou, a vontade de sair panfletando o livro para todas as pessoas que conhecemos. Escrevem este nome e o acompanhem, porque definitivamente farei isso, enquanto fico aqui, lembrando da história de Abigail e dessas mulheres que existem aos milhares ai fora, precisando de ajuda, mas também encontrando a força que precisavam para recomeçarem.
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