Ícone do site Idris Brasil

Resenha: Odisseia estelar – Kim Bo-Young

Resenha: Odisseia estelar – Kim Bo-Young


“Odisseia estelar”
Kim Bo-Young
Tradução: Luis Girão
Arte de capa: Luísa Fantinel
Suma – 2025 – 264 páginas

Nas três novelas que compõem esta fascinante obra da ficção científica sul-coreana, a mestre do gênero Kim Bo-Young explora as forças que regem o universo, mas, acima de tudo, aquelas que movem a humanidade: o amor, a esperança, a criação, a destruição e o significado da existência.

Em duas histórias independentes, mas interligadas ― “Estou esperando você” e “Estou indo até você” ―, Kim Bo-Young narra, com maestria, o amor atemporal de um par que tenta, através da relatividade, retornar à Terra simultaneamente para, enfim, se casarem. No entanto, imprevistos no espaço-tempo adiam cada vez mais a data da cerimônia e, no transcorrer dos séculos na Terra, os noivos se deparam com um cenário irreconhecível. Diante de toda a desesperança que os desafios das longas jornadas espaciais e as mudanças no planeta despertam, a única coisa que persiste e permanece imutável entre eles é o anseio de estarem juntos.

Já em “Pessoas a caminho do futuro”, Selene vive sozinha na residência espacial que há anos é comandada pelas mulheres da sua família. Num ambiente em que não é possível distinguir entre o dia e a noite, ela passa o tempo trabalhando, cuidando da casa e lendo os livros que pertenceram a suas ancestrais. Isso até ser surpreendida por um jovem cuja aparente linguagem grosseira revela um dispositivo-tradutor antiquado. Afinal, por qual motivo, senão uma confusão idiomática, ele teria dito que planeja ir aos “confins do universo”?

Ao conciliar pontos fundamentais da cultura e da sociedade sul-coreana a temas memoráveis que espelham a essência dos questionamentos da humanidade, esta Odisseia estelar conduz os leitores por um universo imenso enquanto reflete sobre a individualidade e a busca pelo sentido da vida.

Não vou me demorar para avisar que “Odisseia estelar” não é um livro para todos os leitores porque é uma ficção científica realmente focada em… ficção científica, com física presente em determinadas explicações, mas a ciência não é o motor das 3 histórias presentes na edição, o que termina provocando uma mistura que é muito interessante e capaz de prender quem quer que seja.

Acho que a primeira coisa de todas que você precisa manter em mente ao começar a ler este livro é que o conceito de tempo-espaço realmente anda junto em seus contos, ou seja, quando você viaja longas distâncias espaciais, você também viaja no tempo – sabe quando lemos que tal estrela está a x anos-luz de distância da terra, mas sequer pensamos sobre porque parece algo tão distante de nós que não faz sentido? Então, é porque para os físicos, a teoria da relatividade de Einstein é o que realmente os rege, e, segundo ela, espaço e tempo não são entidades separadas: ou seja, o que está acontecendo, continua acontecendo. Muita física, eu sei, então só mantenha em mente que os conceitos de distância leva os personagens que estão viajando a também viajarem no tempo, mas só para eles que viajam, já como quem está parado não está se movendo pelo espaço e continua vivendo normalmente. Essa parte compreendida, todo conceito das histórias ficam mais fáceis de serem compreendidas.

Quando você está a bordo de uma nave, não tem a sensação de estar se movendo. Não há vento nem barulho nenhum. As estrelas estão todas inclinadas para um lado, riscando faixas escuras pela janela. Todas as estrelas do universo cintilando ao mesmo tempo. Quando se está aqui, a sensação é de que o universo inteiro, a Terra, minha casa, meus amigos, tudo passa por mim na velocidade da luz, enquanto permaneço perfeitamente imóvel. É como se o meu tempo também estivesse congelado.
Alguém disse certa vez que espaço e tempo são, na verdade, a mesma coisa. Isso significaria que ir para um tempo diferente seria o mesmo que ir para um lugar diferente.
Meu pai viveu a vida inteira em sua cidade natal, porém, quando morreu, era como se ele tivesse viajado pelo mundo todo. De certa forma, ele realmente viajou. Quando ele se foi, nossa cidade natal era um lugar completamente diferente daquele onde ele nasceu. Prédios foram levantados, estradas foram abertas, montanhas foram aplanadas e cursos de rios foram desviados. O tempo levou meu pai a um lugar completamente diferente. Quem poderia dizer que ele viveu no mesmo lugar a vida inteira?

Então temos primeiro conto, “Estou esperando você”, é o amor é o grande motivador de todas ações de um homem tentando viajar pelo espaço para chegar até sua amanda, com quem está com o casamento marcado. Em 15 cartas, vemos o destino agir no que parecia ser somente uma viagem de 2 meses para o homem que viajava chegar até a Terra novamente e se reunir com a futura esposa para as bodas do casal. Carregando um anel musical e todo amor do mundo possível dentro do peito, acompanhamos um homem que vai passando por várias fazes, desde a certeza de que tudo daria certo até um final que realmente deixa o leitor desesperado para ver aquelas personagens reunidas.

Mas a grande pegada deste conto está depois da décima quinta carta no que equivale a um posfácio. Intitulado “Histórias fora da história” na qual a autora Kim Bo-Young nos conta que um dia recebeu um e-mail com um pedido para escrever uma história para uma fã que seria pedida em casamento – e o resto se tornou literalmente história (e não, não vou pedir desculpas pelo trocadilho). Achei incrível a autora ser tão maravilhosa e ainda ver mais sobre o casal por trás da inspiração inicial deste conto que é tão cheio de tristeza e amor, muito amor.

Embora a alma já não exista neste mundo… e se, de uma forma ou de outra, a mente de uma pessoa pudesse ser contida e preservada na forma de dados?
Nesse caso, até mesmo as memórias que alguém tem do outro, ainda que imperfeitas, seriam uma espécie de dado, não? Será que isso também não poderia ser considerado como parte da personalidade da pessoa? Ou, pelo menos, fragmentos dela?
Conhece o ditado “As pessoas não morrerão de verdade enquanto nos lembrarmos delas”?
Enquanto nos lembrarmos de alguém, esse alguém continua vivendo ao nosso lado.
Sendo assim, se, de alguma forma, os dados pudessem ser uma personalidade, então o “você” que existe na minha memória também pode ser uma personalidade.
Se isso for verdade…
Se for verdade, então você está vivendo comigo agora. Pois me lembro de você.
Você está aqui comigo como uma série de dados neste biocomputador que vive e pulsa — eu.
Você estará vivo enquanto eu estiver viva.
Por isso quero continuar vivendo. Para que você viva. Para manter você, quem eu mais amo no mundo, vivo.

Quando a segunda história começa, “Estou indo até você”, você já está apaixonada pelo casal e torce por eles de uma forma muita intensa, então sem surpresas você já está apegada a mulher do casal, mesmo sem a conhecer melhor até ali. Contando a sua história e do que aconteceu durante a sua viagem e sobre seu passado, temos o outro lado de uma verdadeira jornada estelar para encontrar o amor de sua vida, terminando com um tom que deixa até mesmo os corações gelados, descongelados. O amor é e sempre será o maior motor de histórias, até mesmo as ficções científicas.

E mais uma vez temos “Histórias fora da história” falando sobre o casal original e a recepção de um conto que seria a continuação do conto original. Queria mais saber sobre eles e se ainda estão casados e felizes até os tempos atuais, coisa que desejo bastante e também recebemos um pequeno spoiler sobre o conto que virá a seguir, uma ligação inesperada entre as personagens.

O jovem sorriu.
A senhora está certa, vovó. Mesmo vendo a mesmíssima coisa, as pessoas as interpretam de formas diferentes.
Ele ficou em silêncio, com ar pensativo. Uma quietude profunda tomou conta de suas feições, algo mais profundo do que calmo. Um silêncio tão vasto que parecia fazer parte do próprio universo. O tipo de silêncio que atraía para as profundezas até mesmo o pensamento dos que estavam ao redor. Devagar, ele abriu a boca:
O tempo é como uma dimensão. Diferentes fluxos temporais pertencem a diferentes dimensões. Se mesmo em dez ou vinte anos o mundo muda completamente, imagine em dez mil ou vinte mil anos. E, como a senhora disse, em dez bilhões de anos…
O jovem começou a rir, depois prosseguiu:
Não seria mais o mesmo mundo. Não é o espaço que mudou, é o tempo que transformou o mundo. Pensamos estar no mesmo espaço, mas talvez não seja verdade. Fico acreditando que estou sempre voltando à Terra, mas talvez já tenha entrado em outro universo completamente diferente.

O terceiro e último conto, “Pessoas a caminho do futuro”, é o mais hard scifi de todos e não vou mentir e dizer que não tive problemas em acompanhar algumas das pesquisar – sou daquele tipo de leitora que para pesquisar pontos e fatos dos livros que lê, se não estiver claro que é uma completa ficção. Me perdi em alguns momentos lendo sobre física (e sou de humanas, então imaginem!) mas foi uma experiência positiva porque a escrita da autora é realmente cadenciada, o que dá um ritmo intenso a história de Selene, mulher que vive em uma casa espacial e já nasceu sem a gravidade para a puxar contra o solo, e de Seongha, o jovem que chega até ela pedindo sua ajuda. No começo aparentemente confuso, todas as peças vão se encaixando, e mesmo que você fique confuso com as explicações físicas e temporais, você se pega preso pelas perguntas filosóficas no cerne do conto: qual o sentido disso tudo? Temos alma? Temos essência? Onde fica os confins do universo? Acho que já deu para entender a jornada deste conto e até onde ele vai.

Sei que ficção não é mais um gênero tão popular quanto alguns anos atrás, mas ainda acredito que eventualmente voltará a ser, já como suas questões se tornaram mais atuais do que nunca. O progresso da humanidade está ai, IAs incorporadas nos nossos cotidianos, corridas espaciais parecem uma questão de tempo de serem retomadas – mas do que adiantará tudo isso se não tivermos humanidade, e não só a nossa sociedade, mas também os sentimentos dentro de nós. Quem somos e para onde vamos parece ser uma pergunta filosófica demais quando nos deparamos com ela a primeira vez, mas, com o tempo, vai se tornando mais e mais real porque não sei responder para onde estamos indo. Você sabe? Não será este livro que irá te responder, mas ele te fará pensar sobre. E muito.

Para comprar “Odisseia estelar”, basta clicar no nome da livraria:

Amazon.
Magalu.

Sair da versão mobile