Noemi Jaffe
Arte de Capa: Julia Masagão
Companhia das Letras – 2025 – 208 páginas
“Vida é gasto e estou gasta, o espelho que magnifica mostra a verdade e a verdade é a velhice.” No ato de encarar o próprio reflexo, Noemi Jaffe abre vertiginosamente o arcabouço da memória, retomando sua infância e adolescência como filha de imigrantes sobreviventes da Shoá.
Crescendo numa barafunda de línguas ― húngaro, iugoslavo, ídiche, e nosso português brasileiro ―, a menina Noemi vai cavando a toca de sua identidade. Mas a passagem para a adolescência e para a vida adulta se dá através das palavras dos outros: descobrindo o prazer da poesia com uma antologia singular, a glória da rebeldia com um disco de Chico Buarque, as angústias existenciais com Herman Hesse. Te dou minha palavra parece questionar: do que é feita uma pessoa? Não apenas da memória das experiências vividas, mas também da cultura que a atravessa.
Quando nos deparamos com nossos maiores traumas ou medos, o medo é algo natural de nos acompanhar. O que pode não ser tão natural é enfrentar o que está ali, nos assustando e ferindo, então a grande questão se torna: devemos encarar todas essas dores e traumas ou devemos simplesmente deixar no passado e procurar não nos prendermos ao que aconteceu, justamente como uma forma de sobreviver? Enquanto lia “Te dou minha palavra”, da brilhante Noemi Jaffe, me peguei diversas horas pensando nisso, justamente se falar ou não nos ajuda. E a resposta é, claro, individual.
O corpo vai pendendo para baixo, e lá embaixo encontro uma menina. Desde que ela descobriu, com quatro ou cinco anos, que seus pais eram sobreviventes de uma guerra contra os judeus e que sua mãe guardava numa caixa dentro do armário um diário escrito na Suécia — um diário que ela só podia olhar mas não ler, já que nem ler ela sabia, e o diário estava escrito em i-u-g-o-s-l-a-v-o —, essas vidas viraram histórias e as pessoas, personagens. A menina vivia nessas histórias e não prestava para a realidade. Sem amigos, perseguida, invejava a prima magra e boa aluna, tinha os pés chatos e se desequilibrava (as irmãs mais velhas não deixaram a mãe colocar botas ortopédicas nela; hoje as irmãs têm pés altos e finos e ela, pés largos e chatos), se isolava nas festas e prometia se suicidar. Assim que aprendeu a ler, seu tio Arthur a presenteava com livros estrangeiros e seu pai lhe deu a Barsa de aniversário e comprava enciclopédias de um vendedor ambulante. A coleção do Monteiro Lobato, Meu pé de laranja lima, Poesia brasileira para a infância, Demian, a Torá (todos os dias, no Renascença), letras do Chico Buarque, O Pequeno Príncipe, gibis da Mônica e os livros de adultos das irmãs dela. Na casa de sobreviventes de guerra, frequentada por refugiados da Rússia, da Polônia, da Romênia, da Iugoslávia e de outros países de nomes estranhos, ela escutava muitas línguas: português, ídiche, alemão, hebraico, húngaro e iugoslavo. A menina não entendia as línguas, mas escutava as palavras.
Existem livros que acho até pretensão falar que podemos resenhar ou dar opinião de tão profundos e tocantes que são, e aqui temos um exemplo clássico disso. Em um ritmo incrivelmente cadenciado e perfeito, vamos acompanhando o pequeno vislumbre que Noemi entrega de sua vida, sem entregar demais sobre sua família, mas sem privar o leitor de saber informações precisas, como a preciosa palavra Ashkezém, a qual fui pesquisar o significado e indico você a fazer o mesmo. Fiquei tão absolutamente encantada por este livro que desejo ler “Lili: novela de um luto”, livro escrito sobre a morte de sua mãe, personagem central desta trama.
Ele não aceitava a opção do esquecimento. Lembrar é um dever, um compromisso, quem sofreu e esquece está se mutilando e negando a vida. Depois que ele descobriu a palavra “nostalgia”, não largou mais.
Ela não aceitava a opção da lembrança. Esquecer é a única forma de seguir vivendo, quem sofreu e se dedica a lembrar está se mutilando e negando a vida.
Ele queria acordar no meio da noite e conversar sobre o passado.
Ela se deitava e, depois de uma oração breve, adormecia.
Viajar, só para ver os parentes, afinal todos os países são iguais, têm lugares bonitos e feios. Bom mesmo é ficar em casa e no Bom Retiro, uma nova Bačka Palanka, um shtetl, ou um vilarejo no interior da Europa do início do século, os mesmos loucos, mendigos, comerciantes e casamenteiras.
Viajar e conhecer lugares novos é a melhor coisa que existe, o Bom Retiro é feio e sujo, todas as amigas dela já moravam em Higienópolis.
De manhã, a briga se repetia:
“Ashkezém, ela não quer lembrar nada!”
“Ashkezém, ele quer lembrar tudo!”
Ashkezém. Algumas palavras não existem em língua nenhuma e são intraduzíveis: ashkezém é ashkezém. Em casa, nós, as filhas, apenas intuíamos: “Que absurdo”, “Como pode uma coisa dessas?”, “Que maravilha”, “Não consigo acreditar”. Tanto ele quanto ela, para falar mal um do outro, repetiam: “Ashkezém”.
Entre relatos de crimes que parecem impensáveis, como o roubo de identidade, e até mesmo um disco de Chico Buarque em plena ditadura, a narrativa vai se desenvolvendo até o momento no qual as filhas ficam com somente a mãe, sempre tão reta em suas escolhas e na forma como age, em uma viagem até sua terra natal, passagem capaz de comover até os mais duros dos leitores – e se você pensa que se emocionará porque a senhora se emociona, é justamente o contrário. A constatação de que para alguns sobreviventes, todo o horror que aconteceu é tão indescritível que o melhor é não se falar sobre, mesmo depois de anos e anos depois, é doloroso.
As histórias imaginadas — Adão traindo Sarah, a rainha Esther no campo de concentração e o Pequeno Príncipe dando um banho no Cascão — estavam lá, nos livros que a Jany e a Stela abriam sem cerimônia e liam para mim, sem se importar com minha idade, Jung, Fernando Pessoa e Clarice Lispector, e os encartes dos discos da Maria Bethânia, do Chico e do Roberto Carlos. “Nô, sabe o que significa ‘tudo certo como dois e dois são cinco’?” Eu não sabia. Tio Arthur, mais brasileiro do que judeu, trazia os livros mais bonitos de presente, grandes, coloridos e de capa dura: “Noemi, guarda para ser a tua biblioteca, numa prateleira só tua. Escreve o teu nome na primeira página e guarda até ficar velhinha como eu”.
Tio, estou ficando velha, não guardei os livros que você me deu, mas trago quase todos na memória. Te dou minha palavra.
Em uma leitura delicada, corajosa e melancólica, aprendemos sobre a vida da autora: terceira filha do casal Lili e Eri, sobreviventes do Holocausto, cada um com suas feridas e escolhas, a garota vai se tornando mulher e levanta a questão que também está presente na sinopse do livro – mas a resposta aqui é algo bem mais direto e pratico porque somos feitos de nossas memórias, experiências e vivências. E aqui o livro ganha seu coração e seu centro: todo relacionamento de Noemi com os pais, pessoas tão diferentes entre si que levam o que sentem por caminhos totalmente opostos, mas que conseguiram criar uma família e dividir línguas e fragmentos de suas histórias que formaram um cobertor no qual a filha mais nova se cobriu para descobrir quem era além da filha de sobreviventes e imigrantes.
Nunca perguntei a dona Lili a diferença entre Deus e Destino, mas sei qual seria sua resposta mesmo assim. Para ela, não eram a mesma coisa: Deus era o Deus judaico, inconcebível; o Destino não.
“Mãe, o que é o destino?”, pergunto para o ar que roça os pelos do meu braço, menos que um abraço, só um bafejo que chega e passa.
“O Destino, Nôemi, não posso explicar, destino já está escrito, não dá para escapar, para bem e para mal. Vê que aconteceu comigo, por que sobrevivi e por que conheci papai? Para você me perguntar agora que é destino, por isso.”
“Mas e os que morreram? Você também acha que o Destino os marcou para a morte?”
“Que besteira você fala. Você pega tudo muito pesado.”
Mas a vida é repleta de muitas memorias entre família e momentos também felizes e doces, leves e aprendizados que se perpetuam a vida inteira. Como já mencionei, a narrativa é sim, melancólica, não por tristeza ou apatia, mas sim por intrspecção. A forma como vamos entendemos que a palavra dada deve se perpetuar também nos deixa uma marca, a marca que leitores que leram livros que nos acompanharão deixa. Te dou minha palavra.
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