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Resenha: Análise – Vera Iaconelli


“Análise”
Vera Iaconelli
Arte de capa: Elisa Von Randow
Zahar – 2025 – 208 páginas

“Comecei minha primeira análise porque meu irmão havia morrido quatro anos antes, meu pai era alcoólatra, minha mãe era submissa a ele e havíamos sido despejados. Não. Comecei porque precisava conversar com algum adulto que fosse confiável, nem que precisasse pagar para isso. Não. (…) Comecei minha análise porque eram treze horas do dia 20 de novembro de 1982 e eu havia marcado uma entrevista com uma analista.” Assim Vera Iaconelli dá início à Análise , livro no qual perpassa os acontecimentos e as emoções que a levaram ao divã, sua experiência como analisanda, a formação como psicanalista e a necessidade da escrita.

Numa prosa de caráter literário e extremamente íntimo, Vera evoca a história de sua família, a morte de dois irmãos, sua relação com os pais, seus namorados ou maridos, suas filhas, seus analistas. Enquanto reflete sobre suas angústias e seus sintomas, vai costurando suas próprias interpretações, atrelando memória, história social e psicanálise.

O que leva alguém a fazer análise? Sim, aquele tipo de análise. Entrar em um consultório de um desconhecido(a), falar de seus sentimentos mais profundos e escondidos, os maiores traumas e vergonhas. O que leva alguém a sentir essa urge tão grande de falar coisas que não podem ser ditas à um(a) amigo(a), à um(a) irmã(o). Que coisas tão difíceis são essas que não podem ser ditas? Que sentimentos são esses que nos juntam e nos transformam em pessoas? Em “Analise”, temos uma personagem principal que é levada à terapia ainda muito jovem e que compartilhará conosco os relacionamentos de uma vida inteira que a levaram até o terceiro inicio de terapias que impactaram sua vida.

Quinta entre seis irmãos, de descendência italiana por parte de pai, a personagem principal, Vera, nos conta sobre como seu nome é exatamente o mesmo da sua mãe, a deixando com a alcunha de “Verinha”, a filha. Mas acho melhor explicar que a história aqui não é contada em ordem cronológica e logo no começo somos apresentadas a duas Veras e mais uma irmã. A mãe está internada e a Vera, a filha, vai até o hospital visitá-la. Algo natural e normal, todos sabem, filhas visitarem pais no hospital, mas parece haver algo mais entre aquele relacionamento, e a medida que a história vai se desenvolvendo, vamos compreendendo.

Muitos são os caminhos que nos levam a procurar a ajuda de um psicanalista, e todos passam por um certo caldo de cultura que entende que a psicanálise seria uma resposta para o sofrimento. Calhou de eu sentir uma tristeza enorme aos dezessete anos, e de conhecer uma psicóloga que conhecia uma psicanalista. Daí para cair de costas num divã foram dois palitos. Já o percurso que me levou a precisar de ajuda é bem mais custoso de descrever. Resisto o quanto posso. Essa história tem infinitas versões possíveis, e qualquer coisa que eu disser a partir daqui será mais uma delas, ou seja, construções e improvisos sobre um vazio original. Nasci a quinta filha em uma prole de seis — ou deveria dizer oito, uma vez que meu pai teve dois filhos fora do casamento, cuja existência só descobri na adolescência?

Voltando aos tempos de criança, a presença da mãe que comandava a casa e dos filhos que foram em duas levas com diferença entre os três primeiros e os últimos de quase uma década, Vera cresceu em uma casa com uma presença quase onipotente: seu pai, Zaccharias, que tem uma empresa familiar com seu irmão, de quem também se ressente. Seu pai, que pode ser o tipo de homem presente, mas também pode sufocar. Seu pai, que também formou uma segunda família mas jamais terminou o casamento com Vera, a mãe. O pai que ajudou a construir seu mundo, mas também deixou diversas digitais impregnadas de sentimentos fortes demais, muitas vezes embebidas em alcool.

A vida de Vera teve altos e baixos em termos financeiros proporcionados por, claro, seu pai. Como menciona na sinopse, a família chega até mesmo a se despejada de uma casa, mas Vera também estudou em tradicional colégio particular da capital de São Paulo. Seu irmão mais velho, Ricardo, o Ricardinho, faleceu em decorrência de uma doença não investigada, bem ali, no meio naquela sala daquela casa que depois deixou de ser a casa da família. Vera aprendeu a se tornar uma pessoa que ela precisava ser e foi pra faculdade estudar a mesma faculdade que seu irmão iria se formar e morreu antes de graduar-se.

Freud diz que o trauma é precedido pela calmaria para a qual sonhamos voltar, na expectativa impossível de recolocar a pasta de dentes no tubo espremido. Buscamos refúgio nas cenas que antecedem o acontecimento trágico, recriando um momento idílico antes do mal súbito. É como se, no meio de uma guerra, sonhássemos com o tempo anterior ao fatídico bombardeio no qual perdemos um ente querido, sob a condição de esquecermos convenientemente que já estávamos em guerra.
Mas há outras formas de lidar com a intensidade traumática. Uma paciente pode contar uma cena de abuso da qual só se lembra das cores do lustre que tinha ao alcance dos olhos. É como se, para suportar o insuportável, só lhe restasse reduzir-se a um olho que vê um lustre, deixando o corpo ausente de si enquanto o algoz desfruta dele. Os relatos de tortura dizem muito dos subterfúgios que usamos para preservar a alma frente ao horror.

Vera conhece quem viria a ser seu primeiro marido e pai de suas filhas, estando grávida da segunda, quando seu pai adoece e morre. A vida parece simplesmente seguir seu rumo, mas a presença de quem o pai ainda era ficou, até que sua mãe decide viver mais, sair daquela sombra que sempre ofuscou quem ela era, seus gostos e suas ações. Mas, a vida, que ainda está acontecendo, chega em forma de tragédia na família mais uma vez, agora na forma da morte de Nik, o segundo irmão de Vera. De seis, para quarto, mas sua mãe, a Vera, sobreviveu a tudo isso, assim como Vera, a filha, sobreviveu a momentos que não deveria ter enfrentado.

Em diversos momentos da leitura, que tem um tom pessoal e íntimo, fui pesquisar sobre psicanálise e diversas correntes de análises, entre elas a winnicottiana, com suas entrevistas. Para quem gosta de psicologia e análise, este livro se torna indispensável – a ponto de ser desejado por psicólogas (acreditem em mim quando digo isso) e pessoas da área da saúde mental. A escrita de Vera tem um tom próximo, como se estivesse em uma conversa com uma amiga ou em uma sessão de terapia, e confesso que a cada página ficava mais e mais envolvida, me vendo em diversas reações que saltavam das páginas.

Não que eu soubesse disso na época, levou um tempo de análise para que eu recuperasse a importância desses personagens em minha vida. Aliás, eu não podia saber nada sobre nada. Essa era a tônica: não perguntar, não criticar, não demonstrar contrariedade, não opinar. Meu pai reinava absoluto, enquanto minha mãe se dedicava à tarefa impossível de evitar que algo o perturbasse. Ele era uma bomba sempre prestes a explodir. Bastava um fio de cabelo sobre a mesa de jantar, uma resposta pouco audível para uma pergunta. Me lembro de ele chegar em casa, nos ver e tirar do nada algo como “Vocês são uns merdas”. Tínhamos entre dezesseis e sete anos de idade e estávamos sentados assistindo à tv, mas acho que ele estava se referindo à merda que era ter que estar ali, quando na verdade queria estar em outro lugar. Ou ainda à impossibilidade de estar em qualquer lugar sem se sentir dividido entre duas demandas impossíveis.

Como já mencionado o livro não é contado em ordem cronológica, com idas e vindas, uma Vera adulta, doutora em psicanálise e uma Vera mais jovem, ainda vivendo e tendo suas primeiras experiências, compreendendo o mundo. E sim, a trama deste livro é exatamente o que propõe: um ensaio sobre a análise que a personagem principal, que se funde com a autora, fez durante sua vida. Como também falei, ela fez análise em três momentos de sua vida (na verdade, já está na quarta, mas não é o ponto) e o que a levou até decidir fazer aquelas análises sobre sua vida.

E a resposta é justamente essa: a vida. Claro que os traumas e relacionamentos de cada um são únicos, mas tudo isso faz parte do conjunto da vida que estamos todos aqui, tentando viver – ou sobreviver. O centro de “Análise” é o relacionamento de Vera e seu pai, mas é também o relacionamento dela com a vida, com a figura de um pai que tinha um relacionamento intenso com a bebida, uma mãe que se perdeu para um casamento e filhos que procuravam seu lugar no mundo. A vida é a resposta para muita coisa que pode também ser respondido com análise. Confuso, entendo que seja, mas termina fazendo muito sentido quando você pensa sobre.

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