28.12

“O fundo é apenas o começo”
Neal Shusterman e Brendan Shusterman
Valentina – 2018 – 272 páginas

Caden bosch está a bordo de um navio que ruma ao ponto mais remoto da terra: challenger deep, uma depressão marinha situada a sudoeste da fossa das marianas.

Caden bosch é um aluno brilhante do ensino médio, cujos amigos estão começando a notar seu comportamento estranho.

Caden bosch é designado o artista de plantão do navio, para documentar a viagem com desenhos.

Caden bosch finge entrar para a equipe de corrida da escola, mas na verdade passa os dias caminhando quilômetros, absorto em pensamentos.

Caden bosch está dividido entre sua lealdade ao capitão e a tentação de se amotinar.

Caden bosch está dilacerado.

Cativante e poderoso, o fundo é apenas o começo é um romance que permanece muito além da última página, um pungente tour de force de um dos mais admirados autores contemporâneos da ficção jovem adulta.

Eu tenho essa mania de sempre reservar um livro que eu sei que vou gostar como a última leitura do ano, uma coisa meio “simpatia” para virar o ano com aquela sensação de que amei muitos livros aquele ano, e, com isso, fiquei confusa sobre o que ler por último para resenhar pra cá porque eu queria que fosse algo especial, algo significativo, algo intenso e principalmente que me prendesse a ponto de resenhar. Durante o ano, vou juntando alguns livros para ler, e foi no meio dessa lista que encontrei “O Fundo é apenas o começo”, livro que eu já tinha colocado na lista de lançamentos do mês de Abril aqui no Brasil (você pode ler e saber mais algumas curiosidades sobre o livro clicando AQUI).

Sei que parece que estou enrolando para falar do livro, mas quero somente deixar claro que essa resenha vai ser bastante pessoal – muito pessoal, na verdade. A leitura desse livro se tornou pessoal quando eu entendi bem a jornada que ele falava, que é bem isso: o fundo é o começo de uma luta que não para, uma luta que começa quando você está soterrado de sentimentos, bem no fundo, aonde parece que não há esperanças e que nada vai melhorar, nunca mais. O fundo é o começo é literalmente o começo da jornada de Caden, e a nossa, que o acompanha.

As coisas que sinto não podem ser traduzidas em palavras, ou, se podem, são palavras numa língua que ninguém pode compreender.

Preciso assinalar que pra ler esse livro, você precisa estar ciente de que a mente de Caden está se deteriorando e muito da narrativa se passa por metáforas que você só vai realmente conseguir entender a medida que a leitura for desenvolvendo. Quando as primeiras páginas se desvendam para você, tudo parece confuso e até mesmo sem sentido, enquanto você tenta entender como aquele garoto de simples 15 anos de idade está em uma viagem tão perigosa por dentro de um navio, com pessoas desconhecidas e até mesmo correndo riscos que um garoto daquela idade não deveria correr.

A narrativa do livro não se dá de forma linear, então você precisa ir juntando as peças e pensando no passado e no que aconteceu para Caden chegar aquele ponto de sua vida, aonde seus pais estavam enquanto ele começou a se perder – e logo você entende que Caden tem problemas com sua saúde mental. Algo ainda não identificado, algo que começou como uma ansiedade crescente, uma onda que foi aumentando até se tornar um tsunami repleto de pensamentos que ele não mais podia controlar. Caden não se perdeu em um navio: ele está tentando se encontrar.

O que acontece quando o seu universo começa a sair do ponto de equilíbrio e você não tem a menor experiência em reconduzi-lo ao centro?

O livro é narrado todo sobre a perspectiva de Caden e sua visão sobre como tudo está se esvaindo ao seu redor, seus pensamentos que começam a se tornar incoerentes e a impotência que é saber que ele próprio sente ao se dar conta que está pensando em coisas que não correspondem com a verdade, mas não pode simplesmente desligar seu cérebro. Sua visão das pessoas, seus relacionamentos, sua personalidade, suas habilidades – antes, um hábil desenhista que começa a perder a forma de seus traços – tudo isso começa a ceder para um turbilhao que chega de uma forma explosiva. Não há saída para Caden a não ser tentar começar a engatinhar para sair do fundo que ele se encontra. E o fundo não é o do poço, como muitos podem pensar: é o fundo dele mesmo.

Comecei a me questionar sobre os pais dele, que não estavam vendo o que estava acontecendo com o filho. Queria gritar com eles, queria obrigar os amigos de Caden a entenderem o que estava acontecendo com ele, mas foi como um espelho para mim mesma: quando você está trancada em si mesma, você não fala sobre o que se passa dentro de sua cabeça porque você tem medo. Tem medo de ser julgada, tem medo de estar enlouquecendo, tem medo de ser vulnerável. O medo é de ter medo. E eu comecei a entender e a embarcar na jornada de Caden de uma forma que, como diz o livro, somente quem esteve lá vai ser capaz de compreender.

— Em casa, eles esperam que a gente esteja curada — continua ela. — Dizem que entendem, mas as únicas pessoas que realmente entendem são as que também estiveram Naquele Lugar.

Livros com esse tema são tão importantes porque abrem as portas para os jovens começarem a entender e se questionarem sobre seus próprios comportamentos. Nunca, absolutamente nunca, quando fui adolescente, tive um livro desse em mãos, capaz de me fazer pensar que talvez meus pensamentos, minha falta de sono, minhas manias, que tudo isso fosse uma mostra que alguém estava me pressionando demais: eu mesma. Algumas vezes está tudo bem, mas, ainda assim, não está. Não há um motivo, e, ainda assim, existem todos os motivos do mundo dentro de nossas mentes.

A história vai se desenvolvendo e todas as pontas que você acredita que estão soltas, começando a fazer sentido. Todos personagens que parecem que não está lá, estão, e assim como Caden, você começa a entender que mesmo na confusão e na falta de retidão, tudo na história se encaixa de um jeito que te faz entender bem porque esse livro ganhou tantos prêmios assim (e acreditem, foram muitos, mas muitos mesmo). Existe tanto que eu gostaria de falar sobre esse livro, mas não quero falar sobre a trama realmente, somente posso esperar que se alguém ler esse livro e se sentir tocado, de alguma forma, seja por se identificar com Caden, seja por conhecer alguém assim, que procure ajuda – ou seja a irmã do Caden, a Madison, e estende a mão pra ele, entendendo que o mar pode ser bem revolto às vezes.

— Mas se eu aguentar o tranco — diz ela —, vou acabar me adaptando. Vou me encontrar e voltar a ser como era antes. É o que acontece com a gente, entende? A gente se encontra. Embora cada vez seja um pouco mais difícil. Os dias passam. As semanas. Aí a gente se espreme na pele de quem era antes de tudo isso, cola os cacos e segue em frente.

As metáforas e os momentos que Caden vai passando nos prende de um jeito intenso, muito pela escrita sensível do Neal. Nos agradecimentos do livro, descobrimos que toda história de Caden foi inspirada na história do próprio filho dele, o Brendan, que assina todas os desenhos e gravuras do personagem Caden, desenhos esses que o Brendan desenhou quando estava em sua própria jornada em busca de sua saúde mental, em um de seus episódios. O livro é dividido em muitos capítulos pequenos, coisa que normalmente eu odeio, mas confesso que aqui caiu como uma luva porque não deixa os capítulos se perderem na agonia que o personagem principal está sentindo – e acredite, você pode sentir a agonia dele. Acho que foi um recurso usado que foi bastante engenhoso e que funciona perfeitamente para não deixar o leitor se sentir massacrado com todos aqueles sentimentos que transpiram pelas páginas.

Acho que uma das principais metáforas é justamente o nome do livro: “Challenger Deep”, em inglês, que é a Depressão Challenger, o lugar mais profundo da face terrestre, que é para onde o barco de Caden vai. A sacada da Editora Valentina foi traduzir para “O fundo é apenas o começo” porque Caden está indo para o fundo, muito fundo. O mais fundo que um ser humano pode ir. Não preciso explicar essa metáfora, você já entendeu.

O medo de não viver é o temor profundo e duradouro de ver o seu próprio potencial degringolar num irredimível fracasso em que o “deveria ser” é esmagado pelo “é”. Às vezes, penso que seria mais fácil morrer do que enfrentar isso, porque as pessoas têm “o que poderia ter sido” em muito mais alta conta do que “o que deveria ter sido”. Garotos mortos são postos em pedestais, mas garotos com doenças mentais são varridos para debaixo do tapete.

O tempo é algo que me chamou bastante atenção também: para Caden, parecia que se arrastava, enquanto, na verdade, o ritmo estava normal. Ele sentia que estava preso em um navio, fazendo sua jornada, por meses e meses. Talvez seja a intensidade dos pensamentos façam os pensamentos consumirem o tempo, mas, no final das contas, você entende que o tempo está passando devagar porque você está preso em você mesmo. A crueldade e a falta de entendimento sobre as pessoas que precisam de ajuda em seus episódios e em sua saúde mental está presente no livro também, o que faz com que possamos refletir como podemos ajudar quem precisa. Quem precisa entender que o momento é difícil, mas, como no clichê, vai melhorar. Um dia de cada vez, sempre.

No final, ainda há diversas páginas com contatos de ONGs, telefones de ajuda e mais para pessoas que se sentem em confusão mental ou a procura de uma ajuda, um conforto para sua própria saúde mental. Isso também me tocou porque fiquei pensando que esse livro pode realmente ter ajudado alguém que não tinha consciência do que estava acontecendo consigo mesmo e procurou ajuda em um daqueles telefones. Para terminar, há uma foto do Neal com o Brendan. Tocante. Demais.

E é então que compreendo que ele sempre vai estar à espera. Que nunca irá embora. Com o passar do tempo, posso acabar me tornando o primeiro oficial, queira ou não, viajando a lugares exóticos para poder dar outro mergulho, e mais outro, e mais outro. E talvez um dia mergulhe tão fundo, que a Serpente Abissal me pegará, e nunca mais retornarei. Não faz sentido negar que coisas assim acontecem.

Não digo que o livro seja fácil ou para todas as pessoas, mas eu acredito que a vida é feita de momentos difíceis e decisões mais difíceis ainda, então ler sobre e ver que você não está sozinho, seja na depressão, no transtorno de ansiedade, na bipolaridade, na esquizofrenia – em qualquer situação, ajuda. Me ajudou. Então espero que mais pessoas conheçam esse livro, e mais pessoas falem sobre como se sentem e tentem encontrar apoio quando chegarem lá no fundo, porque bem, é ai que tudo começa.

Nessa resenha, sinto total necessidade de falar que não somos parceiros da Editora Valentina e não estou fazendo essa resenha por nenhum motivo além de tentar fazer mais alguém conhecer e ler esse livro. Se você o ler e quiser conversar sobre, pode me chamar lá no nosso twitter @IdrisBR pra gente bater um papo sobre.

Para comprar “O fundo é apenas o começo”, basta clicar no nome da livraria:
Amazon.
Submarino.
Magalu.

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